sexta-feira, 16 de novembro de 2012

Dinheiro de fumaça



Estamos longe de fechar um novo acordo global para diminuir a emissão de gases estufa. O mercado de créditos de carbono, criado para ajudar nessa tarefa, é pequeno diante da demanda, mas cumpre seu papel. Para testá-lo, a SUPER anulou o que poluiu ao produzir esta reportagem.

Imagine a situação: o médico recomenda que você perca 5% dos seus quilos. Até dá para mudar um pouco a alimentação e alguns hábitos, mas não basta. Seu vizinho é bem mais saudável e está sempre em forma. Se dieta funcionasse como o mercado de carbono, seria fácil: você compraria parte do peso que o cara ao lado perde ou deixa de acumular para entrar naquela calça apertada.É isso que os países ricos estão fazendo para ajudar a cumprir suas metas de emissão de gases causadores do efeito estufa - GEE, na sigla do complexo glossário ambiental. São eles, principalmente o CO2, os vilões do aquecimento global. A compra e venda de poluição movimentou mais de 140 bilhões de dólares em 2010. Nada mal para um negócio que não existia uma década atrás e é consequência direta do primeiro acordo para tentar intervir no clima do planeta: o Protocolo de Kyoto, de 1997. 

{txtalt}






















Para entender como esse comércio funciona, a SUPER contabilizou a emissão de carbono desta reportagem. E adquiriu 11 créditos para compensá-la (leia o quadro Fazendo a conta). Foram 3908 quilos de carbono equivalente (a unidade de medida que serve de padrão para calcular o impacto dos gases do efeito estufa) investidos na Usina Hidrelétrica Barra Grande, em Santa Catarina. 

{txtalt}





























Sabemos que o mercado costuma arredondar a conta sempre para cima, até para ser fiel ao princípio do conservadorismo. Também conhecíamos a regra de comparação: para cada tonelada, 1 crédito. Deveríamos então comprar 4 créditos. Parecia fácil. Não foi bem assim. Tivemos de levantar dados com padrões diferentes, como a energia que consomem as lâmpadas que iluminam a redação ou quanto pesa uma página da revista. A primeira conta tinha buracos: o papel era muito mais leve do que os gramas que consideramos na primeira versão. Outro exemplo de como é difícil reunir tantos detalhes. Percebemos apenas na soma final que deixamos de incluir as horas de trabalho do ilustrador com o computador ligado. Resultado: acabamos pagando por créditos acima do total de gases que emitimos. Ok, muito melhor sobrar do que faltar. 

QUANTO SE POLUIA emissão de gases estufa (em milhões de toneladas) caiu na maior parte dos membros do protocolo de Kyoto. O impacto do acordo, porém, que vence em 2012, é limitado. 2010 foi um dos anos mais quentes da história. 

As compras avulsas, como a nossa, acontecem principalmente no mercado voluntário e em quantidades bem maiores que estes 11 modestos certificados de redução de emissões. Aí se impôs outro obstáculo: para viabilizar a compra tivemos de recorrer a empresas que reúnem grande volume de créditos e depois os revendem. O Instituto Totum foi a opção. 

Pagamos cerca de 5 dólares por cada crédito. E emitimos um selo de compensação. Esse processo resultou bem mais caro que o preço dos créditos em si (se nosso objetivo fosse comprar um volume maior de créditos, a diferença seria menor, porque o valor do selo é fixo). O selo é o atestado de que o Totum auditou nossas contas. E, como percebemos logo, nesse campo é fácil errar. De qualquer maneira, pagamos muito mais no valor final da transação também por causa dos impostos embutidos.
FAZENDO A CONTA Como consumimos energia e geramos a poluição de gases do efeito estufa (em CO2 equivalente).

A burocracia visa garantir a seriedade do sistema. Para se ter uma ideia do trabalho envolvido, aprovar um projeto como o da Usina de Barra Grande ou da prefeitura de São Paulo que emitiu 3 milhões de certificados com as usinas de metano nos aterros Bandeirantes e São João pode levar 2 anos. E para completar falta regulamentação clara. Os países apanham, por exemplo, para definir como tributar essas transações. "Na falta de um marco regulatório, há regras internacionais, federais e estaduais, o que dificulta o investimento seguro a longo prazo", diz Marcos Rocha, consultor da Key Associados, que ajudou a elaborar a planilha de emissões da SUPER. As empresas, por sua vez, sofrem para lançar as vendas nos relatórios contábeis.

No Brasil, os certificados são exportados como serviço, mas na Europa, o maior comprador mundial, aparecem importados como valor mobiliário. Por 500 reais apagamos o rastro das páginas que você lê agora. Inaugurada em 2005, por produzir energia elétrica a partir de fonte limpa, a Usina Barra Grande emite cerca de 300 mil créditos de carbono por ano. Tem potencial para atender a 30% da demanda por energia dos catarinenses. O quinhão de certificados da SUPER está registrado no APX VCS, órgão internacional que controla projetos de reduções de emissão no chamado mercado voluntário. Mas, afinal, o que é esse mercado de carbono (glossário)?

CRISE
O mercado de gases do efeito estufa elimina, em tese, menos de 1% de todo o carbono equivalente produzido em 1 ano no planeta. Em dinheiro, são 141,9 bilhões de dólares aplicados na redução de emissões ou em projetos convertidos em outro tipo de benefício para a população, como a construção de moradias populares na cidade de São Paulo. Na prática, é muito pouco para resolver os problemas do aquecimento global. Aliás, hoje, a ONU, principal patrocinadora desse mecanismo, está mais ocupada em garantir a prorrogação do Protocolo de Kyoto ou fundar um novo acordo de mitigação (a palavra é feia, mas é o termo correto para reduzir o impacto humano no clima). As fichas das Nações Unidas estão na Conferência do Clima em Durban (COP 17). O fato é que, seja qual for o resultado das negociações na África do Sul, o mercado de carbono está em transformação.

Ainda se recuperando de uma crise econômica mundial, ele tem de encarar outra na Europa. Os reflexos desta turbulência parecem longe do fim e o impacto é imediato. Se a economia desacelera, necessariamente se produz menos poluição e falta dinheiro para compensar eventuais estouros. A lógica é a mesma que vale para outras commodities. E não é só isso. Analistas dizem que esse mercado caminha para se desgarrar da ONU. Diante da dúvida sobre a existência ou não de um acordo mundial de emissões, podem surgir alternativas a partir de tratados bilaterais, nacionais ou regionais. Países como Brasil e Japão já oferecem programas para que suas empresas poluam menos.

Em Kyoto, em 1997, quase 200 países se comprometeram a agir para cortar suas emissões de gases estufa. Os mais ricos devem jogar, entre 2008 e 2012, 5,2% menos poluição na atmosfera. Segundo as normas do protocolo, quem não bater a meta terá de entregar 30% mais no próximo compromisso regido pela ONU (se é que ele virá).

NA PRÁTICA
Governos e empresas podem criar projetos de redução de emissões no Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL)

Assim como a SUPER buscou compensar sua gordura poluente para tentar mostrar como queimá-la, empresas compram créditos de carbono como parte de seu compromisso socioambiental. E, em alguns casos, como estratégia de marketing. Pega bem ser sustentável. No ano passado, o mercado voluntário girou aproximadamente 400 milhões de dólares, alta de 30% sobre 2009. O Brasil garante um pequeno naco nesses projetos, mas o país movimenta mais dinheiro num dos instrumentos criados pela ONU para atingir as metas de Kyoto, oMecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL). Hoje, ele representa 1% do volume total de créditos certificados no planeta. E é por isso que, para o empresário brasileiro, já foi bem mais fácil ganhar algum nesse ramo. O preço médio dos créditos despencou de 32 euros no mercado regulado em 2008 para cerca de 6 hoje. (veja o infográfico Na Prática)

A meta de um país acertada com a ONU é compartilhada pelos setores público e privado. Os governos penalizam as indústrias ou os setores que estouram seu teto de poluentes ou criam políticas de incentivo para que eles se enquadrem. As empresas recorrem aos créditos quando ultrapassam sua cota.

"O mercado de carbono veio para ficar. Mas, como toda política de incentivo, está à mercê das variações da economia", diz Marcelo Rocha, sócio da Fábrica Éthica Brasil. A prefeitura de São Paulo está entre as vítimas desta crise: cancelou outros leilões previstos para vender os créditos remanescentes dos aterros Bandeirantes e São João por falta de comprador.

Desde que surgiu, além de estar sujeito às tempestades da economia, o mercado de carbono enfrenta críticas por autorizar os países ricos a poluir, na definição de uma corrente de ambientalistas. O comércio de créditos seria um estímulo para que nações e empresas deixem de cuidar da própria sustentabilidade e comprem uma solução no exterior. "Para o planeta, tanto faz onde a redução de emissões vai ocorrer", afirma Ricardo Esparta, professor do Instituto Mauá de Tecnologia e sócio da EQAO Energia. Quando o Protocolo de Kyoto entrou em vigor, em 2005, o mercado de carbono vinha sendo testado desde 2000. Enquanto os países ricos foram obrigados a agir para poluir menos, os países em desenvolvimento tiveram uma mãozinha para reduzir suas emissões, já que nunca tiveram de cumprir limites, o que significaria podar seu avanço econômico. Os formuladores do protocolo nunca planejaram que o mercado de carbono se transformasse no grande sistema de combate ao aquecimento global, mas, sim, fosse um recurso auxiliar.

Há padrões diferentes para participar do mercado: o regulado, onde estão o MDL e outros mecanismos vinculados ao acordo assinado no Japão, e o voluntário, onde se enquadram iniciativas como a da SUPER. A venda de certificados ocorre de duas maneiras. Muitas vezes empresas começam a gerar créditos antes de realizar um projeto como instalar uma caldeira nova no lugar de outra mais poluente. A venda financia a troca. Outro jeito de negociar é registrar programas em andamento e acumular uma espécie de ação verde a ser negociada no mercado financeiro, como fez São Paulo.

Com tanta burocracia, não é surpresa que tenha surgido só em fevereiro passado o primeiro caso de um cidadão que conseguiu ser remunerado por reduzir o próprio rastro de carbono. Ou melhor, um casal. Randy e Tami Wilson receberam um cheque de US$ 17,20 pelas emissões de gases que anularam ao instalar painéis solares em sua casa, na Pensilvânia. É bem pouco perto do investimento de 58 mil dólares nos painéis e no trâmite do projeto. Mas a ideia pegou e 2,2 mil residências americanas já seguiram a dieta. Por aqui, índios suruís da Amazônia conseguiram aprovar um projeto para manter preservada uma área de 243 mil hectares em Rondônia.

Ainda que o balanço final sobre o cumprimento das metas de Kyoto só vá ocorrer em 2014, o levantamento das emissões de cada país dá pistas de quem está perto de atingi-las ou não. E vai aqui outra verdade sobre o mercado de carbono. Ser um grande comprador de créditos nem sempre significa voluntarismo ambiental. O Reino Unido já reduziu em quase 30% a fumaça de suas chaminés. E é o maior consumidor da atualidade. Os ingleses esperam é lucrar com a revenda desses créditos. Mas pelo visto vão ter de guardar os certificados na carteira de fumaça por algum tempo se quiserem fazer dinheiro.

PARA SABER MAIS
Calcule sua própria pegada de carbono (em inglês)

Mercado de Carbono e Protocolo de Kyoto
Gabriel Sister, Elsevier, 2006

Aquecimento Global e Créditos de Carbono
R.P. Souza, Quartier Latin, 2007

Nenhum comentário:

Postar um comentário